ETEs descentralizadas I – Potencial na Universalização do Saneamento

No contexto das possíveis soluções para alcançar a universalização dos serviços de saneamento (2033), discute-se cada vez mais o “tratamento descentralizado”. Com base em nossos 20 anos de experiências no setor, gostaríamos de contribuir com esta discussão. Começamos, no presente blog, com uma análise sobre a abordagem e o potencial para as soluções descentralizadas, incluindo as ETEs municipais de pequeno porte (ETE / Estacão de Tratamento de Esgoto).

De imediato isto já provoca a primeira dúvida: será que a ETE que atende o esgoto de uma cidade inteira, por menor que seja, pode ser chamada de ETE “descentralizada”? Essa dúvida tem certa justificativa, mas vamos mostrar que muitas das experiências adquiridas nas situações descentralizadas podem ser aplicadas em ETEs de pequenos municípios, especialmente em relação às tecnologias e às medidas apropriadas de operação e manutenção.

Por que então não usar somente o termo “pequeno porte”? Ou será que as ETEs descentralizadas são ainda menores que as ETEs de pequenos municípios ou implicam em outras tecnologias? Nada disso! O ponto crucial é que o termo “descentralizado” abrange uma caracterização ainda mais ampla, que vai além do tamanho da ETE e envolve novas formas de propriedades e responsabilidades pela operação, por exemplo.

Achou interessante? Então convidamos a conhecer nossas experiências com o saneamento descentralizado:

 

A abordagem do Saneamento Descentralizado e sua adaptação às demandas do setor

Originalmente, a expressão “ETE descentralizada” foi introduzida para situações em que uma única ETE central não poderia atender toda a cidade, resultando em várias ETEs de porte menor. Na realidade atual do Brasil, a demanda por várias ETEs já virou uma necessidade (e nem são de pequeno porte), seja por tamanho dos centros urbanos e crescimento não planejado e/ou por falta de uma área única para a implementação da ETE central, ou seja, pelas limitações geográficas, técnicas e econômicas que não permitem convergir toda rede coletora de esgoto das cidades para um ponto só.

Como resultado, a solução descentralizada se refere cada vez mais às situações que podem ser individuais – geralmente novas urbanizações em áreas remotas de atendimento das redes coletoras de esgoto ou onde a infraestrutura existente (rede coletora e/ou ETE) não tem capacidade suficiente para absorver mais esgoto. Na Figura 1 são apresentadas três tipos de demanda:

Figura 1 – Esquema de tratamento descentralizado com diferentes opções de instalações próprias ou individual de saneamento: 1) Residência; 2) Hotel e 3) Condomínio Residencial (Fonte da Imagem)

 

Levando em consideração a realidade do Brasil, fazemos uma sistematização um pouco mais abrangente:

1.  Áreas residenciais: Segundo dados mais recentes do Diagnóstico Temático SNIS 2022 (ano de referência 2021), 55,8% da população total possui acesso à rede de esgoto (sendo 64,1% da população urbana). Comparado com a situação na época de Atlas de Esgoto (2017) apresenta um aumento de 3% (veja em nosso blog). Por outro lado, o estudo do Atlas de Esgoto  se aprofundou mais que o SNIS 2022, mostrando, por exemplo, que o esgoto de 1/3 da população atendida pela rede nem passou pelo tratamento (sem ETE), ou seja, estava sendo descarregado diretamente no corpo receptor. Também mostrou que a eficiência das ETEs (remoção de DBO) chegou a uma média de 74%, e isso avaliada somente pelo potencial da tecnologia aplicada, não comprovada pela realidade. Será que isso mudou? De qualquer forma, as ETEs municipais que operam no limite da carga, precisam de adequações antes de poder atender novas conexões.

As opções para as soluções descentralizadas, nos casos de áreas residenciais, vão de atendimento para cada residência ou cada edifício até soluções coletivas para condomínios até parques residenciais (área residencial com estabelecimentos comerciais) que precisam da rede coletora própria.

Figuras 2 e 3 – ETEs para áreas residenciais: (2) SBR da Rotária para edifício de 300 habitantes e (3) Wetland da Rotária para condomínio de 2.200 habitantes

 

2.  Empreendimentos, instituições etc.: empreendimentos que surgem, por exemplo, na periferia das cidades onde não tem atendimento com rede de esgoto também podem ser obrigados a investir no próprio tratamento. Exemplos típicos seriam: centros comerciais (shopping center), fábricas (esgoto sanitário gerados nos banheiros e pelas refeições), áreas turísticas e de lazer (hotéis, restaurantes, parques, marinas) ou instituições como hospitais, campos universitários, penitenciárias, entre outros.

Figuras 4 e 5 – ETEs para empreendimentos: (4) WTL da Rotária para esgoto sanitário de 150 funcionários de uma fábrica e (5) SBR da Rotária para tratar esgoto sanitário de 400 funcionários de um estaleiro

 

Esses dois tipos de soluções descentralizadas evoluíram ao ponto que tratam efluentes sanitários de situações bem individuais. Aqui reside também a principal diferença para os efluentes sanitários que são coletados pela rede que atende uma região urbana maior e, consequentemente, se mesclam os diferentes tipos de efluentes. Desta maneira, o esgoto passa por certa equalização que se reflete tanto nas concentrações dos parâmetros, como também nas variações da vazão.

Ou seja: Quanto menor a ETE e/ou mais unilateral as atividades que contribuem com a geração de efluente, mais unilateral é a composição do efluente e mais expressivos são os picos de vazão. O 3º grupo de possíveis soluções descentralizadas se enquadra exatamente nestas condições: 

3.  ETEs municipais de pequeno porte: seja como ETE única para um pequeno município ou sejam diversas ETEs para um município maior. O efluente a tratar nestas situações é mais similar com o efluente de áreas residenciais (1) do que com os efluentes coletados para ETE de maior porte – pela sua composição e mais ainda pelas variações de vazão a esperar. Vamos documentar essa observação nos blocos a seguir. 

Figuras 6 e 7 – ETE para pequenos municípios: Reatores SBRs da Rotária para tratar esgoto municipal de 5.000 habitantes (10L/s)

 

 

Suposições alternativas sobre a abordagem do saneamento descentralizado 

Na prática encontram-se interpretações divergentes de saneamento descentralizado, não necessariamente são erradas no seu contexto, mas o objetivo de discutir as soluções de saneamento descentralizado como contribuição para a universalização do saneamento requer abranger um escopo maior, conforme explicado a seguir:

i)  Uma suposição comum é que a “solução descentralizada” seja atribuída unicamente ao setor privado. Vale ressaltar que essa interpretação realmente não corresponde à realidade, até porque na área pública também pode existir a necessidade de implementar e operar ETE própria (hospitais, penitenciária etc.), e por outro lado, ETEs para novos condomínios residenciais, por exemplo, podem permanecer com a municipalidade.

ii)  Outras vezes a “solução descentralizada” pode ser usada para descrever a solução que serve apenas para uma ou poucas residências, ou até para descrever soluções que separam os efluentes (águas cinzas/águas negras) e promovem o reuso. A presente consideração busca sistematizar um range maior de atendimento e as consequências em comum para as soluções de saneamento. Neste contexto, o reuso seria uma questão além do saneamento básico que merece uma análise à parte.

iii)  O termo “solução descentralizada” pode ser utilizado para promover determinadas tecnologias de tratamento, por exemplo, reatores compactos” ou “Wetlands de tratamento”. Vale ressaltar que dependendo das condições e exigências de cada lugar diferentes tipos de tecnologias podem ser usadas no saneamento descentralizado, sempre quando forem escolhidas e projetadas adequadamente.

As questões sobre as tecnologias apropriadas para as soluções descentralizadas e o tema de reuso vamos retomar a discussão em um dos blogs a serem publicados na sequência.

 

Considerações sobre o potencial do saneamento descentralizado no Brasil

Qual seria então o limite de tamanho da ETE no âmbito de solução descentralizada? Recordamos que há uma variação considerável de aplicações para o “saneamento descentralizado” que também pode significar diferentes tamanhos da ETE: 

Em caso de 1) áreas residenciais e 2) empreendimentos e instituições, as ETEs podem atender entre 5 pessoas (residência) até milhares de pessoas (campus universitário, parque de diversões), mas o que importa nestes casos seriam a composição unilateral e as consideráveis variações na vazão, que se mantêm independentemente do tamanho da ETE. 

Certamente o caso 3) dos pequenos municípios, deve ser considerado de forma diferenciada e ainda depende de cada situação. Mas geralmente pode ser assumido que a partir de 20 a 30 L/s (10.000 a 15.000 habitantes) os efluentes sanitários tendem a se equilibrar na rede coletora devido às contribuições cada vez mais diversificadas. Vamos analisar isso num blog a ser publicado em breve.

Voltando ao potencial para contribuir com a universalização dos serviços de saneamento, vale ressaltar que conforme a avaliação do ATLAS de esgoto (2017), a maioria dos investimentos deve se concentrar nas ETEs de pequeno e médio porte. Certamente isto representa uma faixa relativamente grande de tamanho das ETEs, mas na verdade, 60% dos municípios do Brasil contam com menos que 15.000 habitantes (Figura 8, últimas 3 colunas).

 

Figura 8 – Distribuição dos números de municípios por faixa de habitantes (Fonte)

Na Figura 8 as colunas coloridas buscam apresentar a relevância da ETE de tamanho menor (escolhendo, por exemplo, um atendimento de 1.000 até 10.000 habitantes, 2 a 20 L/s):

  • Para os municípios de colunas de coloração avermelhada, uma única ETE de porte pequeno resolve a situação do saneamento;
  • Para os municípios de colunas amareladas, as ETEs de porte pequeno ainda contribuem de maneira significativa para a universalização do saneamento;
  • Os municípios maiores, marcados em colunas verdes, também precisam das ETEs de pequeno porte, porém, o impacto de cada uma é relativamente menor.

Claro, cada local tem suas condições específicas, e deve ser considerado, por exemplo, a capacidade de cada corpo receptor. De modo geral, a demanda de grandes cidades por ETEs de qualquer porte ainda continua, considerando que os 327 maiores municípios (primeiras duas colunas >100.000 habitantes) reúnem 60% da população brasileira. Ou seja, provocam 60% de potencial de contaminação pelo efluente sanitário, sem considerar ainda os efluentes sanitários que surgem adicionalmente pelas atividades comerciais e industriais.

Por outro lado, também fica claro que esse imenso potencial somente poderá ser realizado e contribuir efetivamente com a universalização do saneamento se forem implementadas soluções que resolvam o tratamento – o que exige tecnologias adaptadas às condições diferenciadas de saneamento descentralizado, viabilizando também a operação das ETEs nestas condições.

Figura 9 e 10 – Soluções completas da Rotária: SBR com WTL para tratamento de lodo em excesso: (9) Parque residencial de 6.800 habitantes e (10) Parque industrial de 10.000 funcionários

 

Conclusões

Pela abordagem apresentada, não necessariamente é o tamanho, ou o tipo de proprietário, nem mesmo a tecnologia que caracteriza a ETE descentralizada, mas as caraterísticas em comum do esgoto, referente a sua composição e às variações na vazão que diferem do esgoto coletado pelas grandes redes –  considerado até então como “esgoto comum”.

Discutiremos nossas experiências a esse respeito nos próximos blogs. Também mostraremos as consequências dessa diferença na escolha da tecnologia adequada e nas medidas apropriadas para a operação das ETE descentralizadas.

Diante da imensa demanda no setor de saneamento, a pergunta certa então não é se as soluções descentralizadas podem contribuir para a universalização, mas como se pode assegurar que elas contribuam efetivamente com este objetivo.

Isso envolve outras questões, incluindo a responsabilidade pelas ETEs que se desenvolvem sem participação do município/empresas de serviço de saneamento. Além disso, é preciso um cuidado com os pequenos municípios e com os proprietários individuais que não possuem a competência técnica para escolher a tecnologia apropriada ou não contam com o poder econômico para manter as medidas de operação das ETEs. Outro desafio consiste na organização de controle da eficiência de diversas pequenas ETEs em uma determinada região, o que pode gerar obstáculos logísticos e econômicos junto aos órgãos responsáveis.

Um avanço significativo nesse sentido foi a inclusão das categorias de Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) nas mais recentes resoluções estaduais que estabelecem os padrões de emissão de efluentes de maneira diferenciada de acordo com o tamanho da ETE. Conforme a Resolução CONSEMA 181/182 de 2021 em Santa Catarina (veja este assunto também em breve em nosso blog). Isso é uma condição importante para incentivar a implementação de ETEs de pequeno porte, garantir conformidade legal e orientar na escolha da tecnologia apropriada.